Por: Wa-Zani
Fez no dia 20 de Janeiro, trinta e cinco anos, que o engenheiro agrónomo, político, nacionalista e intelectual revolucionário guineense e cabo-verdiano Amílcar Cabral foi assassinado, em Conacry, por companheiros seus de estrada, veteranos da guerrilha. Mataram-no, cobardemente, de madrugada, junto à sua casa e de sua esposa Ana Maria, ao não se deixar amarrar. Os seus algozes deixaram-se embalar por um “vira” colonial do governador da colónia da Guiné, António Spínola e Alpoim Calvão, este último comandante da operação “Mar Verde”, destinada a eliminar ou a capturar os dirigentes do PAIGC sedeados na Guiné-Conacry. Porém, testemunhos da época revelam, que Amílcar Cabral tinha consciência, que poderia ser traído pelos companheiros de luta e, algumas vezes, afirmara: “Se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só nós próprios”.
Escrevia o poeta Larbac (anagrama de Cabral): “Vem mamãe velha vem ouvir comigo/ O bater da chuva lá no seu portão/ É um bater de amigo/ Que vibra dentro do meu coração…”, um poema sonhado para os dez grãos de areia no Atlântico, sua outra pátria, já que nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, a 12 de Setembro de 1924 e só com oito anos de idade foi com os pais para Cabo Verde. O lema lançado por Cabral “Dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos” parece corresponder à divisa “Vamos descobrir Angola” dos Novos Intelectuais de Angola, liderados pelo poeta Viriato da Cruz.
Drástica e cobardemente Cabral foi assassinado com um tiro no fígado e depois, com uma rajada de metralhadora na cabeça. Assim morreu o poeta e revolucionário, que não se deixou amarrar e que, mesmo depois do primeiro tiro, manifestou o desejo de dialogar, como quem já estava instruído para o amarrar ou eliminar. Morria, fisicamente, Cabral, mas o seu maior poema de compromisso com a liberdade solta-se e imprime uma nova dinâmica à luta na Guiné-Bissau, até à independência deste país nas matas de Madina de Boé, em 24 de Setembro de 1973. Hoje, há quem chame a Amílcar Cabral, simplesmente, um utópico e ainda bem que o faz. Pois não é a similaridade com o país imaginário do chanceler inglês Tomás More, que está aqui em causa. Nem sequer a fantasmagoria julgada irrealizável por quem não tinha, sequer, naquele tempo, aprendido a sonhar a ser livre, quer porque não tinha ainda nascido ou não tinha idade para isso; quer porque, naquele tempo, era muito mais fácil e mais seguro viver ao sabor de uma corrente fatalista e com um discurso de profecia da desgraça. Para alguns, considerados até muito cultos e inteligentes, Cabo Verde não era África e o cabo-verdiano não era africano. Assim sendo, a utopia só poderia estar do lado de Amílcar Cabral, um poeta, um sonhador!
Ser utópico, que os haja muitos, a exemplo daqueles que, entre outros, sonharam inventar as máquinas a vapor, a electricidade, o telefone, a televisão, a primeira viagem espacial à Lua… O sonho de perfeição social julgado impossível de atingir, tal como a cidade perfeita e o governo ideal na obra de Thomas More, não é mais do que a emergência de uma corrente ideológica dos que, acertadamente, acreditam, que as sociedades são mutáveis e que, independentemente das diferentes correntes de pensamento, a dialéctica existe, desde a antiguidade clássica até aos dias de hoje.
Qualquer projecto de aperfeiçoamento político e social tem a sua base ideológica ao procurar estabelecer uma ordem, que ainda não existe. Qualquer ideólogo ou reformador social tem de se basear num determinado paradigma, que considere ideal e lhe sirva de estratégia de acção. O progresso da humanidade não se faz senão por referência a uma intenção procurando o sentido do melhor e um ideal qualquer. Nesta conformidade, a utopia é necessária à marcha da humanidade e ela existe mesmo naqueles, que afirmam não a aceitar e até a condenam [BIROU, A. (1978), Dicionário de Ciências Sociais, Publicações Dom Quixote, Lisboa, p.417].
A utopia que se fez necessária à Guiné-Bissau, a Cabo Verde e a África é património de poucos que, como Cabral, souberam pensar um futuro melhor para os seus povos: “Cá estou de novo e a marcha não pára, não pode parar, temos de caminhar firmemente até à vitória final (…). Afinal, a chacina feita pela polícia e civis portugueses teve este balanço: 24 mortos e 35 feridos, alguns muito graves. Chegaram a matar alguns africanos dentro de água, quando tentavam fugir à polícia e alcançar os barcos que estavam ancorados perto do cais de Pijiguiti (Bissau). Crime mais hediondo que pagarão um dia, porque o nosso Povo, nós todos, jurámos em silêncio vingar os nossos mártires, os primeiros sacrificados pela libertação da nossa Pátria. Foi uma lição e importa tirar daí as maiores vantagens para a luta”. [LARA, Lúcio (1999), Carta de Amílcar Cabral a Lúcio Lara (Lisboa?, 24?.09.1959), Documentos e comentários para a história do MPLA até Fev. 1961, Publicações Dom Quixote, Lisboa, p.161]. Aparentemente, para o Eng. Amílcar Cabral não seria mais cómodo, com o estatuto social que já possuía no tempo colonial, fazer como o avestruz? Mas, felizmente, para todos nós, africanos e até portugueses, não o fez.
Hoje, tanto a Guiné-Bissau como Cabo Verde tornaram-se países independentes, graças à utopia de Cabral, que em 1970, tal como Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, são recebidos, em audiência privada, por Sua Santidade o Papa Paulo VI. Cabo Verde, hoje, com uma falta gritante de matérias-primas e uma secura de décadas é um país africano com uma posição privilegiada e invejável no Índice de Desenvolvimento Humano. Quem diria? Isso é ou não utopia face ao que Cabo Verde foi no tempo colonial? Se a trave-mestra para um melhor bem-estar dos cabo-verdianos, hoje, na sua própria terra, está no homem que primeiro pensou e lutou pela independência daquele país, então, por que ignorar Cabral?
Leio comentários de indignação de Iva Cabral, filha primogénita de Amílcar Cabral, “revoltada, cansada, de um ritual de todos os anos na mesma data, quando depois, o pai, herói, é esquecido nos meses restantes”. [JORNAL DE ANGOLA (20 de Janeiro de 2008), Internacional, p.2].
Todos os povos têm as suas referências histórico-identitárias, precisam delas e têm de aprender a ser solidários com as gerações passadas, como parte de uma estratégia de educação para o desenvolvimento, assente na defesa do património, na assunção da história em todas as suas facetas positivas e negativas, e na necessidade de solidariedade para com os antepassados. Procurar esquecer Cabral, para pôr quem no seu lugar? Aqueles contra os quais lutou Cabral e estão na origem do seu assassinato?
Não sendo eu cabo-verdiano, nem guineense, não conhecendo Iva Cabral, entendo, perfeitamente, a sua revolta e indignação e com ela estou solidário. Como afirma Alda do Espírito Santo, relevante figura das letras e da nação são-tomense, e uma das mulheres mais destacadas da chamada geração de Cabral: “Tivemos sonhos e acreditámos numa sociedade diferente, não precisamos de absolvição”. [Entrevista de Alda do Espírito Santo ao ÁFRICA 21 de Novembro 2007, p.6]
In, Jornal de Angola de 24 de Janeiro de 2008
Fez no dia 20 de Janeiro, trinta e cinco anos, que o engenheiro agrónomo, político, nacionalista e intelectual revolucionário guineense e cabo-verdiano Amílcar Cabral foi assassinado, em Conacry, por companheiros seus de estrada, veteranos da guerrilha. Mataram-no, cobardemente, de madrugada, junto à sua casa e de sua esposa Ana Maria, ao não se deixar amarrar. Os seus algozes deixaram-se embalar por um “vira” colonial do governador da colónia da Guiné, António Spínola e Alpoim Calvão, este último comandante da operação “Mar Verde”, destinada a eliminar ou a capturar os dirigentes do PAIGC sedeados na Guiné-Conacry. Porém, testemunhos da época revelam, que Amílcar Cabral tinha consciência, que poderia ser traído pelos companheiros de luta e, algumas vezes, afirmara: “Se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só nós próprios”.
Escrevia o poeta Larbac (anagrama de Cabral): “Vem mamãe velha vem ouvir comigo/ O bater da chuva lá no seu portão/ É um bater de amigo/ Que vibra dentro do meu coração…”, um poema sonhado para os dez grãos de areia no Atlântico, sua outra pátria, já que nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, a 12 de Setembro de 1924 e só com oito anos de idade foi com os pais para Cabo Verde. O lema lançado por Cabral “Dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos” parece corresponder à divisa “Vamos descobrir Angola” dos Novos Intelectuais de Angola, liderados pelo poeta Viriato da Cruz.
Drástica e cobardemente Cabral foi assassinado com um tiro no fígado e depois, com uma rajada de metralhadora na cabeça. Assim morreu o poeta e revolucionário, que não se deixou amarrar e que, mesmo depois do primeiro tiro, manifestou o desejo de dialogar, como quem já estava instruído para o amarrar ou eliminar. Morria, fisicamente, Cabral, mas o seu maior poema de compromisso com a liberdade solta-se e imprime uma nova dinâmica à luta na Guiné-Bissau, até à independência deste país nas matas de Madina de Boé, em 24 de Setembro de 1973. Hoje, há quem chame a Amílcar Cabral, simplesmente, um utópico e ainda bem que o faz. Pois não é a similaridade com o país imaginário do chanceler inglês Tomás More, que está aqui em causa. Nem sequer a fantasmagoria julgada irrealizável por quem não tinha, sequer, naquele tempo, aprendido a sonhar a ser livre, quer porque não tinha ainda nascido ou não tinha idade para isso; quer porque, naquele tempo, era muito mais fácil e mais seguro viver ao sabor de uma corrente fatalista e com um discurso de profecia da desgraça. Para alguns, considerados até muito cultos e inteligentes, Cabo Verde não era África e o cabo-verdiano não era africano. Assim sendo, a utopia só poderia estar do lado de Amílcar Cabral, um poeta, um sonhador!
Ser utópico, que os haja muitos, a exemplo daqueles que, entre outros, sonharam inventar as máquinas a vapor, a electricidade, o telefone, a televisão, a primeira viagem espacial à Lua… O sonho de perfeição social julgado impossível de atingir, tal como a cidade perfeita e o governo ideal na obra de Thomas More, não é mais do que a emergência de uma corrente ideológica dos que, acertadamente, acreditam, que as sociedades são mutáveis e que, independentemente das diferentes correntes de pensamento, a dialéctica existe, desde a antiguidade clássica até aos dias de hoje.
Qualquer projecto de aperfeiçoamento político e social tem a sua base ideológica ao procurar estabelecer uma ordem, que ainda não existe. Qualquer ideólogo ou reformador social tem de se basear num determinado paradigma, que considere ideal e lhe sirva de estratégia de acção. O progresso da humanidade não se faz senão por referência a uma intenção procurando o sentido do melhor e um ideal qualquer. Nesta conformidade, a utopia é necessária à marcha da humanidade e ela existe mesmo naqueles, que afirmam não a aceitar e até a condenam [BIROU, A. (1978), Dicionário de Ciências Sociais, Publicações Dom Quixote, Lisboa, p.417].
A utopia que se fez necessária à Guiné-Bissau, a Cabo Verde e a África é património de poucos que, como Cabral, souberam pensar um futuro melhor para os seus povos: “Cá estou de novo e a marcha não pára, não pode parar, temos de caminhar firmemente até à vitória final (…). Afinal, a chacina feita pela polícia e civis portugueses teve este balanço: 24 mortos e 35 feridos, alguns muito graves. Chegaram a matar alguns africanos dentro de água, quando tentavam fugir à polícia e alcançar os barcos que estavam ancorados perto do cais de Pijiguiti (Bissau). Crime mais hediondo que pagarão um dia, porque o nosso Povo, nós todos, jurámos em silêncio vingar os nossos mártires, os primeiros sacrificados pela libertação da nossa Pátria. Foi uma lição e importa tirar daí as maiores vantagens para a luta”. [LARA, Lúcio (1999), Carta de Amílcar Cabral a Lúcio Lara (Lisboa?, 24?.09.1959), Documentos e comentários para a história do MPLA até Fev. 1961, Publicações Dom Quixote, Lisboa, p.161]. Aparentemente, para o Eng. Amílcar Cabral não seria mais cómodo, com o estatuto social que já possuía no tempo colonial, fazer como o avestruz? Mas, felizmente, para todos nós, africanos e até portugueses, não o fez.
Hoje, tanto a Guiné-Bissau como Cabo Verde tornaram-se países independentes, graças à utopia de Cabral, que em 1970, tal como Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, são recebidos, em audiência privada, por Sua Santidade o Papa Paulo VI. Cabo Verde, hoje, com uma falta gritante de matérias-primas e uma secura de décadas é um país africano com uma posição privilegiada e invejável no Índice de Desenvolvimento Humano. Quem diria? Isso é ou não utopia face ao que Cabo Verde foi no tempo colonial? Se a trave-mestra para um melhor bem-estar dos cabo-verdianos, hoje, na sua própria terra, está no homem que primeiro pensou e lutou pela independência daquele país, então, por que ignorar Cabral?
Leio comentários de indignação de Iva Cabral, filha primogénita de Amílcar Cabral, “revoltada, cansada, de um ritual de todos os anos na mesma data, quando depois, o pai, herói, é esquecido nos meses restantes”. [JORNAL DE ANGOLA (20 de Janeiro de 2008), Internacional, p.2].
Todos os povos têm as suas referências histórico-identitárias, precisam delas e têm de aprender a ser solidários com as gerações passadas, como parte de uma estratégia de educação para o desenvolvimento, assente na defesa do património, na assunção da história em todas as suas facetas positivas e negativas, e na necessidade de solidariedade para com os antepassados. Procurar esquecer Cabral, para pôr quem no seu lugar? Aqueles contra os quais lutou Cabral e estão na origem do seu assassinato?
Não sendo eu cabo-verdiano, nem guineense, não conhecendo Iva Cabral, entendo, perfeitamente, a sua revolta e indignação e com ela estou solidário. Como afirma Alda do Espírito Santo, relevante figura das letras e da nação são-tomense, e uma das mulheres mais destacadas da chamada geração de Cabral: “Tivemos sonhos e acreditámos numa sociedade diferente, não precisamos de absolvição”. [Entrevista de Alda do Espírito Santo ao ÁFRICA 21 de Novembro 2007, p.6]
In, Jornal de Angola de 24 de Janeiro de 2008